A ficção que emerge do subterrâneo O esgoto apresenta um universo sombrio e profundamente simbólico, onde um personagem sem nome vive recluso nas entranhas da cidade, compartilhando o espaço com excrementos, ratos e o lixo humano que escorre da superfície. Ele não vê ninguém, mas ouve tudo. Isolado, absorve os sons do mundo de cima e os interpreta à sua maneira, misturando lucidez e delírio. Ali, entre corredores úmidos e atmosferas pestilentas, desenvolve pensamentos agudos sobre a existência, sobre o que resta do humano quando tudo o mais é descartado. A escrita de Maria Clara é impiedosa. Não há suavidade ou concessões estéticas: há a carne ulcerada, o pus, a urina, o mofo, a pele em decomposição. Cada palavra serve para confrontar o leitor com aquilo que normalmente se rejeita. O conto é uma alegoria poderosa daquilo que escondemos sob os tapetes sociais — o refugo que expelimos e insistimos em negar como parte de nós. O homem anônimo é todos nós, e sua jornada subterrânea escancara a realidade da marginalização, do abandono e da tentativa desesperada de atribuir sentido à própria condição. O esgoto é, acima de tudo, uma experiência sensorial e filosófica, marcada por uma linguagem intensa, imagética e desconcertante. Maria Clara Arantes se afirma como uma autora capaz de tensionar os limites entre a literatura e a arte, entre o pensamento e o corpo, entre o que somos e o que fingimos não ser.