Monstros abissais e cavalos-marinhos, livro excepcional de Ivete Nenflidio, se abre sob o signo da perda das palavras, do roubo das palavras, como a insinuar que, perdida a superfície mais externa da comunicação, os poemas que leremos devem emergir de região mais abissal, às vezes monstruosa, às vezes maravihante, mas sempre fonte de espanto. Nesta poesia, desse modo, a palavra é ponto de chegada, e não ponto de partida. O livro fala em “lugares improváveis”, “paragens despovoadas”, para nomear um espaço difícil de nomear, o do desejo. “Ainda posso sentir o abeirar-se dos seus lábios nas minhas costas”. Já escreveu o poeta René Char: “O poema é o amor realizado do desejo que permaneceu desejo”. Contudo, e talvez para compensar essa constante vertigem do desejar, a poeta também se cerca de coisas concretas, com três dimensões bem estabelecidas: ruas de pedras, “insetos crepusculares”, “vidraças quebradas pela bola de meia”. Telheiros, alpendres, chãos de ladrilhos, álbuns de retratos, livros de receitas, aparecem aqui como aquele tanto de real a que nos agarramos quando o pensamento parece ser sugado pelas “paragens despovoadas” do pensamento-fantasma. É como se o livro tivesse o ritmo, a dinâmica do respirar: puxar o de fora, liberar o de dentro. Mas como respirar em regiões abissais? E como viver apenas na superfície das coisas, quando vislumbramos, alguma vez, o outro lado: o poema, o amor, que anunciam sempre que há outra superfície, sem fundo, que há a superfície da ausência? Arrisco-me a ler no livro novamente a resposta do respirar (como Rilke falava: “Respirar, invisível poema”). Mas isso ainda diz pouco sobre o que se passa aqui. Arrisco então ler outra resposta: respirar com, respirar junto. Afinal, há um “você” que percorre todo o livro como ausência presente, superfície de ausência, que é mais do que lembrança porque é interlocutor e endereçamento, é aqui e agora, e – em meio a um mundo de guerras, mercadorias que já nascem obsoletas rumo ao lixo, a um mundo contudo ainda capaz de maravilhamento – existe não só o suspirável, mas o respirável. Em diálogo com filósofos, poetas, com o passado e com o presente, e em especial com seu “interlocutor-você”, em versos contidos ou fluxos caudalosos, em imagens íntimas de alta voltagem lírica ou em panorâmicas que anunciam e denunciam os campos de refugiados e as opressões de todos os tipos, a poeta convoca belamente a imagem de Monstros abissais e cavalos-marinhos para, paradoxalmente, falar do que em nós é o verdadeiramente humano, demasiado humano, respiravelmente humano. Carlito Azevedo
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